O que os psiquiatras não te contam?
Este novo livro sobre saúde mental no mundo contemporâneo vai abrir a sua cabeça… mas só figurativamente, por sorte.
Creio poder dizer que todos nós temos estado ultimamente com uma saúde “pra lá de mental”. Ou foi assim que se acostumou a chamar o estado contemporâneo da nossa saúde em certos círculos da Internet. A expressão é excelente: hoje em dia, quando falamos em saúde, muito frequentemente pensamos é na mental. Há estatísticas que apontam São Paulo como uma das cidades com maior número de casos de transtornos psíquicos – o que, mesmo se não for estritamente verdadeiro, fecha muito bem com a experiência cotidiana de quem vive por aqui.
Junto a isso, falamos muito mais hoje em transtornos psíquicos: depressão, pânico, mania, bipolaridade, psicopatia, esquizofrenia…. termos que, mesmo quando não sabemos muito exatamente o que significam, ilustram para todos nós, falantes de português, situações que parecem compreensíveis. Outro dia ouvi de uma faxineira que ela, após ter sido repreendida pelo patrão, tinha ficado depressiva. O termo é inexato, claro, mas revela algo sobre nossa relação imaginária com os nomes dos transtornos. E daí vem a pergunta: o que os próprios psiquiatras estariam achando disso?
A situação social da profissão médica tem problemas sérios no Brasil atual. Nem preciso mencionar as posições do conselho federal da classe, que flerta com a extrema-direita dia sim e dia também. Nem aquela batida posição do médico-Deus, senhor da Vida e da Morte, pairando acima dos mortais. Ou a aura de riqueza ou de sabedoria que parece surgir espontaneamente assim que se descobre que alguém é medico, ou que vai se tornar médico. Dado este fundo, seria normal imaginar que um psiquiatra, quando vê um funcionário qualquer dizendo que está depressivo, mal contenha uma risada de deboche. E que eles, em geral, guardem para si mesmos o conhecimento mais verdadeiro dos intricados labirintos da psiquê humana, das formas corretas de terapia, etc. E que escondam esse conhecimento por trás de um véu de termos difíceis, raramente escutados pelos leigos. Afinal, tudo isso é típico de todas as classes poderosas. Ou seja, há provavelmente muito que os psiquiatras não nos contam.
Por isso, justamente, me foi tão gratificante encontrar, um pouco ao acaso, a psiquiatra e psicanalista Juliana Belo Diniz, e poder contribuir de alguma forma ao projeto de um livro que busca dizer exatamente isso: o que os psiquiatras não te contam. Pois isso mostra que há também psiquiatras, como Juliana, que desejam, sim, dizer o que os outros não dizem, e que entendem o quanto a relação de poder estabelecida num consultório pode ser prejudicial à própria profissão médica e ao seu objetivo de promover globalmente a saúde da sociedade. Para isso, será preciso ir além das receitas de remédios tão comuns em nossos dias. É preciso refletir sobre a saúde e a doença, sobre o quanto a política e a sociedade influenciam nossos anseios e nossos pensamentos, e sobre o papel que a própria imagem da psiquiatria toma para si neste cenário assustador que vivemos.
Aprendi muito com Juliana no tempo em que trabalhamos juntos, quando fui convocado a ajudar na pesquisa e na preparação de alguns assuntos laterais abordados no livro, em geral de história das ciências, ou da apresentação didática de assuntos muito científicos, como o mundo da produção de imagens do cérebro. Naquele momento, ela já tinha um livro pronto em mãos, e fizera quase toda a pesquisa relativa à história da psiquiatria e dos remédios para o cérebro. Juliana já havia percebido, desde antes de nos encontrarmos, algo que sempre defendo por aqui: que o recurso à história não é secundário para compreender um assunto, mas que ao contrário o desenvolvimento histórico é o melhor jeito de entender mais exatamente um assunto. Por esta via, é possível desmontar muito da mistificação atual em torno das pílulas da felicidade que se receitam nos consultórios, mas também o papel da indústria farmacêutica nisso tudo. As posições de Juliana são muito ponderadas, e ela consegue com êxito defender a ciência sem precisar defender aquele cientificismo que infelizmente também está um pouco em moda desde Natália Pasternak e outros autores por aí. Além do mais, ela de fato explica para leigos as diferenças entre os remédios a partir da história de sua descoberta e de seu uso clínico.
O livro ataca principalmente uma concepção exclusivamente biológica da psiquiatria, como se a saúde mental não tivesse a ver com a sociedade, com a política, com a economia. Juliana desmonta, aos poucos, todos os pressupostos daqueles que gostariam que nós fôssemos apenas máquinas biológicas, como se fosse necessário apenas física, química e biologia para compreender o ser humano e sermos todos felizes. Esses pressupostos também fizeram parte da expansão do uso dos remédios psiquiátricos, e até de algumas iniciativas malajambradas de defesa da ciência. Contra isso, veremos que não é possível entender o que se passa com a nossa saúde mental falando apenas de neurotransmissores, mas é preciso legitimar também o sentido que as coisas têm para nós: nossas relações pessoais, nossos anseios (construídos também em contato com o mundo a nossa volta), nossa rotina. As coisas não são só materiais, elas têm também um sentido (que eu chamaria de existencial) que vai além disso; e é só nesse sentido ampliado que podemos falar de saúde mental.
Se é assim, os remédios sozinhos não vão nos salvar, não poderiam nos salvar. Ao contrário, a psiquiatria vive uma crise, muito bem descrita por Juliana, exatamente porque apostou todas as suas fichas nos remédios. Tampouco nos ajudará toda a parafernália de imagens do cérebro, que prometem mostrar “objetivamente” os pensamentos que ocorrem em nossa mente através de imagens muito tecnológicas do cérebro. Aliás, o livro explica com cuidado como são feitas essas imagens, e exatamente por qual motivo não será possível ler pensamentos ou impor desejos através da manipulação do cérebro. Ademais, observa-se que isso não seria sequer razoável de esperar, exceto através da força de um hype tecnológico (produzido pelo capital especulativo, de modo aliás muito parecido ao das promessas da inteligência artificial — mas essa última conexão é por minha conta e risco).
Com uma noção assim mais aberta, e até mais poética, da vida humana e da saúde, será possível a cada leitor abrir a cabeça a respeito dos remédios psiquiátricos e da saúde mental, mas apenas em sentido figurado, deixando de lado a fantasia médica de literalmente abrir a cabeça dos pacientes para ver o que se passa ali!
O livro da Juliana Belo Diniz, O que os psiquiatras não te contam, está em pré-venda pela editora Fósforo, e estará disponível no dia 10 de março em São Paulo, para daí ser distribuído por todo o país.
A Juliana tem seu próprio substack, que vocês podem acessar aqui:
Que surpresa boa!!! Adorei o “até mais poética”!