A USP e a filosofia brasileira, parte I
Um resumo da questão em torno do “método estrutural de leitura” uspiano
“Nossa, Lory, que decepção! Cê acha mesmo que vai conseguir falar de filosofia brasileira usando um problema interno da USP?” – Essa crítica hipotética é válida, porém defenderei que ainda faz sentido abordá-la assim, se estiver claro que isso não esgota de modo algum o assunto “filosofia brasileira”. Pegar por este ângulo não é simples bairrismo, é antes lidar com uma historiografia consolidada, e o fato de eu ter a USP como alma mater me põe em condições de tentar resumir um debate que, para quem é de fora da filosofia, ou de fora da USP, ou de fora da filosofia brasileira, pode parecer muito nebuloso. O debate envolve a tradição do famigerado “método de leitura estrutural uspiano”.
A USP na filosofia brasileira
Primeiramente, um resumo quanto à relevância do curso de filosofia da USP para a história da filosofia brasileira. Como se sabe, Portugal (ao contrário da Espanha) não fundou universidades em sua colônia nas índias ocidentais. Brasileiros tinham que ir à Europa nos séculos passados para ter um curso superior (salvo poucas exceções): Coimbra era a mais célebre para o Direito, Montpellier para a Medicina, etc.
E havia por aqui os padres. A reconstrução da história remota da filosofia brasileira, no geral, envolve obras de jesuítas tão recentes quanto o século XVIII, no máximo XVII; e que só foram muito recentemente descobertas por um punhado de pesquisadores na linha de frente (como pude presenciar em uma mesa do penúltimo encontro da associação nacional de pós-graduação em filosofia (ANPOF) em 2022, evento bienal, com um pesquisador que recuperara manuscritos no Maranhão). Para o século XIX, sobra relativamente pouca coisa: autores esparsos, influência gigantesca dos debates europeus, pouco diálogo interno – fatores que tomados em conjunto não constituem propriamente uma “tradição”. É plenamente possível, hoje, voltar àqueles autores; mas não há de modo algum continuidade ao longo desses séculos de um debate propriamente brasileiro, alicerçado aqui e que constitua referência comum aos posteriores. E, se podemos ter agora uma visão mais de conjunto sobre esses períodos, é também por esforços de pesquisadores atuais, como Margutti e Canhada.
A filosofia sempre fez parte da cultura letrada, claro, embora em terras brasais ela tenha no geral ficado em segundo plano – o que a tornava, portanto, questão diletante de bacharéis (em Direito, naturalmente), que dominavam um debate público no geral superficial – ou é o que muitos da época dizem, ao menos. O país, como se sabe, era majoritariamente analfabeto, e a circulação de livros e jornais era muito mais limitada que hoje. Eram esses, porém, os intelectuais públicos do período. A partir do século XX, no entanto, a história da filosofia brasileira se torna em grande medida a história das instituições universitárias criadas para ofertar cursos oficiais de filosofia. Provavelmente havia antes, sim, uma parcela de cursos e professores menos célebres de filosofia, preceptores particulares, etc. Mas é na força das instituições que ela se tornaria algo de vulto a nível nacional. Embora eu não conheça os meandros dessa história em todo o país (e aqui há algum bairrismo confessado de formação), é certo que o primeiro grande curso superior de Filosofia no Brasil foi exatamente aquele criado na fundação da Universidade de São Paulo, em 1934. A elite paulista buscava alçar-se como elite cultural nacional, em contexto tanto mais combativo após o fracassado “movimento de 1930” (pateticamente chamado ainda de “revolução” pelos paulistas, no feriado mais fascista deste estado). Para isso, financiou-se a vinda de dezenas de professores europeus para fundar, de uma vez, todos os cursos da “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras” (FFCL), que se fundiria institucionalmente a outras instituições mais antigas de ensino superior do estado de São Paulo: a Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, a Escola Superior de Agricultura (em Piracicaba). A criação da FFCL e sua união a essas outras instituições foi o ato da criação da USP, e a FFCL tornou-se o coração da instituição, sendo a Filosofia, evidentemente, idealizada como reunião e centro deste arranjo universitário. O Rio de Janeiro não ficaria de todo para trás, inaugurando cinco anos mais tarde a Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) como parte da Universidade do Brasil (de 1920), atual UFRJ.
As missões europeias à USP da década de 30 trouxeram professores principalmente da Alemanha, da Itália e da França. Cada curso teve suas preferências de nacionalidade, de acordo com os arranjos diplomáticos/acadêmicos possíveis à época (conheço uma pesquisa excelente sobre o transplante de uma tradição italiana de Física à mesma FFCL, por exemplo). Foi nesse contexto então que nasceu uma inequívoca colonização do pensamento brasileiro pela filosofia francesa. Com estes professores, seria importado também o famigerado “método de leitura estrutural”, vigente entre alguns intelectuais franceses naquele mesmo momento histórico.
A motivação do debate em torno desse assunto, portanto, é a de obter um balanço: a) da influência francesa na USP, e b) da posterior influência uspiana no resto do país. Isso inclui formações,sequelas, cabrestos, paternalismos, jogos institucionais por poder e financiamento, e a própria memória/historiografia da filosofia brasileira. Mas o problema central, que envolve todo problema de memória, é que ela induz o presente e as compreensões do que é memoriado. Portanto, ela influi em perguntas sobre o que é, se há, e até onde vai, a filosofia brasileira atual.
“Método estrutural”?
Todo graduando em filosofia uspiano das últimas décadas ouve falar em método estrutural desde o primeiro ano, nem que seja apenas nos corredores, e com esse rótulo se constitui a identidade do bem fazer filosofia, rigoroso e atento aos detalhes do texto. Isso por si mesmo poderia ser meio insosso e vago, afinal de contas filosofia é uma questão de texto, já que mesmo o “pensamento” é adquirido e analisado por meio dos textos que o exprimem. Porém, com o “método estrutural” se coloca o peso de toda uma tradição francesa (a da missão uspiana propriamente) que devia ter sido (supõe-se) também a tradição absorvida pelos melhores professores do departamento. Com isso, está em jogo não apenas o bem ler, mas principalmente conhecer as obras dos autores canônicos, ser capaz de compreendê-los e acompanhá-los nos detalhes argumentativos. Por isso, este método é também usado como filtro pedagógico: não seguir o bom método estrutural equivaleria a não ter tido uma boa educação filosófica, desconhecer o instrumental adequado. Por isso, ele é considerado o fundamento da tradição filosófica da USP, de forma a alçá-la como guardiã do “verdadeiro método de leitura”, o rigoroso, o pra valer, o que não deixa espaço para charlatães, profetas ou malucos de todo tipo.
Mas o que é o método estrutural? Ao responder isso, normalmente se traz uma grande bibliografia, tendo à frente os grandes livros de interpretação da filosofia cartesiana de Martial Guéroult (1891-1976), principalmente Descartes segundo a Ordem das Razões, ou a distinção entre “tempo lógico” e “tempo histórico” na intepretação da filosofia, como feita por Victor Goldschmidt (1914-1981). Esse rol de textos está sempre a crescer, mas temos outras balizas relevantes consolidadas, principalmente por professores da própria USP. O já aposentado professor Carlos Alberto Ribeiro de Moura, por exemplo, mostra em seu texto “Historia stultitiae e Historia sapientiae” que o “estruturalismo” deste método de leitura nada a ver com o estruturalismo em sentido mais amplo (Saussure, Jakobson, Lévi-Strauss…), mas que diz respeito apenas a uma forma de lidar com os textos. Para Carlos Alberto, a história da filosofia pode ser encarada ou como uma história dos sábios, que portanto merece ser estudada e lida, ou como uma história dos erros, que portanto pode ser abandonada e desprezada. Ainda outro autor relevante aqui é Paulo Arantes, que tem em seu Um Departamento Francês de Ultramar uma história ácida do departamento de filosofia da USP e sua situação política e institucional.
Existe filosofia no Brasil? Uma resposta fácil e cínica é: só há historiadores da filosofia. É esta a pecha que recai sobre o mesmo método que a USP usou para se manter no centro das atenções e justificar sua “excelência” acima das demais: “aqui sabemos ler um texto de filosofia”. Isso não é desprezível, de todo modo, mas retrucam seus detratores: isso é lá filosofia? Onde estão as teses originais, o pensamento pujante, os intelectuais públicos, a força política da filosofia? É curioso que isso seja, mesmo que nas entrelinhas, considerado responsabilidade de um método de leitura de texto, e que seria por si mesmo e de partida incapaz que seria de alçar voos mais grandiosos, sem considerações políticas e contextuais mais amplas. De toda forma, esta tarefa coube na prática à literatura brasileira e sua história, às ciências sociais, à música brasileira. Foram elas, principalmente, que contribuíram para construir uma imagem de brasilidade com a qual nos identificamos mais ou menos ainda hoje. O desprezo pela filosofia, por outro lado, ultrapassa uma suposta insipidez de sua produção, uma vez que não a lemos, via de regra. Como dizer que é irrelevante o que não se leu? Estamos num círculo vicioso de suposta desimportância, mas, dentro da própria tradição filosófica, muita coisa foi feita, para quem a conhece. Para isso, ainda é preciso lê-la.
Esta é a situação “tradicional” da questão. Se a trago hoje, é para poder considerá-la em seus mais recentes desdobramentos… (semana que vem, a continuação: a quantas anda essa discussão hoje, últimos acontecimentos, e mais.)
Aguardando ansiosamente a continuação. Parece até final de episódio de série!
tema importante, adorando saber sua apreciação dele. por enquanto concordando muito com a reconstrução da questão. ansiosa pelo restante!